para quem olhasse as bancadas, recheadas de faces descontraídas e olhos famintos por entretenimento, não notaria nenhuma perturbação no espírito do circo.
mas havia um sentimento inebriante por detrás das cores, que lhe alegravam a face, já algo derretidas devido à alta temperatura que se fazia sentir e provocado pela forma como a tenda retinha o calor existente no exterior.
para ele, apesar de saber que quando debutasse a maioria da plateia sorriria infantilmente, mesmo os mais graúdos, nada daquilo fazia sentido.
as cores que lhe adocicavam o rosto não lhe pertenciam e as coisas plastificadas causavam-lhe estranheza. até mesmo os sapatos tinham um tamanho inferior ao seu.
a estranheza era ainda maior quando, embrenhado nas cores e disfarces de palhaço, mirava o antigo trapézio, inalcançável para quem tinha agora os pés no chão, no solo, no tapete mundano.
relembrava a altura em que impulsionado pelo trapézio conseguia acariciar as estrelas, cuja luz rompia a cúpula da tenda do circo, onde também ele brilhava.
mas agora, nem o seu fiel trapézio parecia o mesmo. anteriormente, o trapézio era a divisória entre o céu e a terra. mas não era mais. Agora, uma rede situava-se entre o trapézio e o chão.
uma rede que servia para rectificar a realidade quando algo inesperado ocorria. tal como quando acordamos de um sonho negro, a rede era uma segunda oportunidade, criando no fundo uma nova realidade, que deixava de ser crua.
para o ex-trapezista sem rede, tornado palhaço, nada daquilo fazia sentido. A rede era um machado lancinante cravado no seu peito. por isso tinha descido. fora uma descida que, mesmo não envolvendo queda, tinha danificado mais do que qualquer tombo do trapézio sem rede para o amparar.
agora era apenas alguém com um sorriso desenhado por cima dos seus lábios, que na verdade se encontravam secos, áridos, muito mais mudos e neutros do que em tempos idos. A contrastar, as faces da plateia a sorrir, às vezes por apenas visualizarem a presença dele.